Aimé Césaire relendo o cânone: transformar Shakespeare em palimpsesto

Fabrice Schurmans (Universidade de Coimbra)

Na sua peça Une Tempête, Césaire mostra como um autor canónico como Shakespeare participou consciente ou inconscientemente da “colonialidade do ser” europeu. A personagem de Caliban, protótipo do selvagem submisso pelo saber/poder do branco, agregava todas as características que durante séculos foram pejorativamente associadas ao homem negro (feio, indisciplinado, possuidor de uma energia sexual fora do comum…). Em The Tempest, revoltava-se contra os poderes de Prospero, mas a sua revolta foi-lhe inútil pois não conseguiu abalar sequer o poder do branco.

Num gesto inédito, Césaire não só aponta para o conteúdo racista da peça de Shakespeare, como também, à semelhança do seu Caliban, se insurge contra o saber do poder imperialista. Acto de resistência, acto escandaloso, pois o subalternizado transforma um dos autores do cânone ocidental em palimpsesto do seu próprio texto. Ou seja, pela primeira vez, o Outro – por cima do qual costumávamos escrever depois de ter quase destruído o seu próprio texto (os seus saberes, a sua paisagem, até o seu corpo) –, devolve-nos um olhar corrosivo, no primeiro sentido da palavra.

Césaire foi, porém, ainda mais longe. Aproveitou o seu domínio dos códigos literários ocidentais para propor um novo cânone, utilizando um dos géneros mais prestigiados no campo literário ocidental: a tragédia. Fá-lo com um duplo propósito: por um lado, demonstrar ao Norte global que os seus códigos, práticas e conhecimentos já não lhe eram exclusivos, e, por outro lado, oferecer ao Sul global um texto inédito onde o seu trágico era finalmente tido em conta.